Sofia Carvalho transformou o burnout num novo começo.
Quando o corpo grita, é hora de escutar

Nasceu a 10 de outubro de 1986, no dia mundial da saúde mental, é natural do Porto, filha única, amante de chá, adora a natureza, passear e passar tempo ao ar livre.
Chama-se Sofia Carvalho, é a primeira psicóloga nómada portuguesa, licenciada em psicologia clínica com Mestrado em neuropsicologia clínica e especializada em burnout.
Fundou a Clínica de Psicologia on Line, que hoje conta com 9 profissionais da área, e tornou-se Nómada Digital. Nos últimos anos, já esteve em 42 países, onde aproveita para dar consultas e estudar a forma como, em outros locais do mundo, se lida com o stress e a saúde mental.»
O tema saúde mental e burnout é demasiado importante para ser ignorado e pedimos a Sofia Carvalho que nos esclarecesse um pouco mais sobre o tema.

Da exaustão à reinvenção
Sofia, o que a levou a dedicar-se ao estudo e à prevenção do burnout, tanto no contexto laboral como parental?
Comecei a trabalhar muito jovem, com cerca de 16 anos, e nunca mais parei. Fui trabalhadora estudante durante todo o meu percurso académico, o que me levou a acumular trabalho, com estudo, com estágio, aulas, tese e mestrado. Quando terminei os estudos mantive-me no trabalho corporativo, com a psicologia clínica privada em part time, não estava satisfeita com a minha forma de trabalho, mas mantive-me sobrecarregada por cerca de 12 anos. Nunca tive tempo para me questionar sobre o motivo de trabalhar tanto e de forma tão intensa, muitas vezes em locais cujos valores eram opostos aos meus. Foi assim que eu própria cheguei ao Burnout.
“O esgotamento entrou na minha vida de forma sorrateira,…”
O esgotamento entrou na minha vida de forma sorrateira, só quando comecei a questionar a minha vocação para a psicologia é que percebi que alguma coisa não estava bem.
Como tive a oportunidade de me relacionar cedo com o mundo do trabalho, de ter vários trabalhos até encontrar o “ideal” para mim, de ter sentido na pele o Burnout, e por nos meus empregos me ter relacionado com centenas de pessoas, o interesse pela área de prevenção do burnout posso dizer que apareceu de forma tão natural, que agora, olhando para trás, parece que sempre esteve aqui.
O que é, afinal, o burnout?
A minha experiência pessoal trouxe-me à reflexão sobre o que é realmente o Burnout. Pela primeira vez, este termo foi mencionado na década de 1970 por Herbert Freudenberger que o definia como “Um estado de fadiga ou de frustração motivado pela consagração a uma causa, a um modo de vida ou a uma relação que não correspondeu às expectativas.” Começou a ser ligado “apenas” a profissionais de saúde, mas logo expandiu para outras profissões. Atualmente o CID-11 com o código QD85 define “o Burnout (esgotamento) como uma síndrome conceptualizada como resultante de stress crónico no local de trabalho que não foi devidamente gerido. Caracteriza-se por três dimensões: sensação de falta de energia ou exaustão; aumento do distanciamento mental em relação ao trabalho, ou sentimentos negativos ou cínicos em relação ao próprio trabalho; e uma sensação de ineficácia e falta de realização pessoal. O esgotamento refere-se especificamente a fenómenos no contexto profissional e não deve ser utilizado para descrever experiências noutras áreas da vida.”
Burnout parental: o esgotamento invisível
O Burnout parental ainda não é formalmente reconhecido em classificações internacionais, mas pesquisas emergentes mostram que a sobrecarga emocional, combinada com a pressão de conciliar trabalho e família, pode levar a sintomas muito semelhantes aos do Burnout profissional.
É por isso que hoje dedico a minha carreira à prevenção do Burnout, ajudando pessoas a encontrar equilíbrio, proteger a saúde mental e reconectar-se com os seus valores.

Sinais de alerta: quando o corpo fala
Quais são os sinais mais comuns de burnout que os pais e profissionais devem estar atentos no seu dia a dia?
Os sinais de Burnout nem sempre aparecem de forma óbvia, digo muitas vezes em consulta e nos conteúdos que faço para as redes sociais, que os seres humanos têm uma característica tão extraordinária como assustadora, que é a capacidade de adaptação. Conseguimos adaptar-nos a tudo, tanto ao “bom” como ao “mau” e muitas vezes só percebemos como estamos quando a exaustão já está instalada. Tenho relatos de pacientes na clínica que dizem estar esgotados há mais de 5 anos.
“…podem estar atentos a alguns sinais que aparecem gradualmente:“
No dia a dia, tanto pais como profissionais podem estar atentos a alguns sinais que aparecem gradualmente:
- Cansaço extremo e falta de energia: acordar já a sentir-se esgotado, mesmo depois de uma noite de sono, ou sentir que não consegue dar conta das tarefas do dia. Precisamos deixar de romantizar o cansaço. Ficar cansado é normal e esperado, mas devemos conseguir recuperar desse cansaço, quando deixamos de conseguir recuperar, já não é cansaço, é exaustão.
- Distanciamento emocional: começar a sentir-se desligado do trabalho, da família ou das pessoas à sua volta; perder a paciência com facilidade ou sentir-se indiferente a situações que antes lhe causavam prazer. Perdi a conta aos pais que nas consultas dizem não conseguir brincar, nem prestar atenção aos filhos, os pais que dizem que estão sempre a gritar, os profissionais que dizem já não aguentar mais o seu trabalho.
- Sensação de ineficácia: sentir que nada do que faz é suficiente, que não está a cumprir bem o seu papel, seja no trabalho ou em casa.
- Culpa e autoexigência: uma voz interior que constantemente critica e diz que poderia ou deveria estar a fazer mais. A eterna culpa de saber que nunca vai conseguir estar nos dois lados ao mesmo tempo, no trabalho e em casa.
- Alterações físicas: dores musculares, enxaquecas, alterações do sono ou do apetite, que muitas vezes ignoramos como consequência do cansaço emocional. Quando a mente já não aguenta mais, o corpo grita.
- Perda de motivação e prazer: atividades que antes davam prazer deixam de ter significado ou parecem demasiado pesadas.
- Irritabilidade e impaciência: pequenas frustrações tornam-se enormes, e as relações pessoais ou profissionais sofrem com isso.
“…estes sinais não são fraqueza, mas sim alertas do corpo e da mente…”
O mais importante é perceber que estes sinais não são fraqueza, mas sim alertas do corpo e da mente a dizer que é preciso desacelerar, redefinir prioridades e pedir ajuda. Reconhecê-los cedo permite intervir antes que o esgotamento se torne profundo, seja no trabalho, seja na vida familiar. E é possível aprender a viver de forma mais equilibrada, mais alinhada connosco.

O impacto do stress nos filhos
Como é que o stress dos pais pode afetar diretamente o bem-estar emocional das crianças?
O stress dos pais não afeta apenas quem o sente ele tem impacto direto nas crianças, mesmo quando os adultos tentam “esconder” o que estão a sentir. As crianças são extremamente sensíveis ao ambiente emocional à sua volta e percebem pequenas mudanças na voz, nos gestos ou na forma como os pais reagem. As crianças são esponjas.
Quando os pais estão constantemente sobrecarregados ou exaustos, é comum que surjam comportamentos como: irritabilidade, impaciência ou dificuldade em estar presentes de forma atenta. Infelizmente na nossa sociedade e devido ao excesso de trabalho e de responsabilidade, é comum ver pais a ser impacientes com as crianças, a não respeitar os tempos delas. Isso pode gerar nas crianças sentimentos de insegurança, ansiedade ou frustração, porque elas percebem que algo não está bem, mesmo sem saber exatamente o quê.
“…o stress prolongado pode levar a padrões de interação menos positivos…”
Além disso, o stress prolongado pode levar a padrões de interação menos positivos: menos brincadeira, menos atenção, maior tendência a gritar ou a impor regras de forma rígida. Ao longo do tempo, isto pode afetar a autoestima da criança, a confiança na relação com os pais e a capacidade de lidar com as próprias emoções.
Por isso, cuidar da própria saúde emocional não é apenas um ato de autocuidado, mas também um ato de cuidado para com os filhos. Ajudamos todos os dias pais a estar mais consciente do próprio stress e procurar estratégias de gestão seja através de apoio social, rotinas mais equilibradas a criar um ambiente emocional mais seguro e acolhedor para toda a família.

A Clínica Online: uma resposta ao caos
Pode partilhar um pouco da sua experiência pessoal com o burnout e como essa vivência influenciou a criação da Clínica de Psicologia Online?
Claro. O Burnout foi o ponto de viragem na minha vida profissional, não digo que foi a melhor coisa que me aconteceu, porque não foi, e se conseguisse escolher preferia nunca ter passado por ele, mas foi importante para fazer o que faço hoje. Por muito que tente não consigo perceber quando começou, mas sei que se instalou de forma muito lenta na minha vida, estar sobrecarregada era para mim normal, não ter tempo para nada, e lutar todos os dias para tentar convencer-me que tinha o emprego “ideal” e que não fazia sentido sentir-me mal.
“…Sabia que não podia estar onde estava…”
Só quando comecei a não conseguir ter a sensação de descanso, quando comecei a ter falhas graves de memória é que me apercebi que precisava de mudar. Sabia que não podia estar onde estava, mas não sabia bem o que podia fazer de diferente, comecei por sair do trabalho corporativo na altura da pandemia. Comecei aí a trabalhar apenas por conta própria, ainda com consultas presenciais, mas a minha insatisfação mantinha-se, era menor, mas ainda estava lá.
“…conto já com uma equipa com 9 profissionais extremamente qualificados.“
Um dia estava a falar sobre uma viagem que tinha feito aos EUA e comentei que lá era comum as consultas de psicologia serem feitas de forma remota, online, devido às dimensões do país, e pensei, porque não? Fiz a minha página de Instagram, dediquei-me apenas ao online e hoje já não estou sozinha, conto já com uma equipa com 9 profissionais extremamente qualificados. Equipa esta que vai continuar a crescer, e que graças ao online me permite escolher apenas os melhores para trabalhar comigo, já que não estou limitada a uma localização geográfica.
Hoje posso dizer que estou satisfeita com a minha forma de trabalhar, porque me permite aliar as minhas duas paixões, a psicologia e as viagens, já que com o online posso trabalhar em qualquer parte do mundo.

O mundo como sala de consulta
Durante as suas viagens como nómada digital, que diferenças notou na forma como outras culturas lidam com o stress e a saúde mental?
Viajar e viver em diferentes países é uma das experiências mais enriquecedoras que tenho, não só a nível pessoal, mas também profissional. Estar em contacto com outras culturas fez-me perceber que a forma como lidamos com o stress e com a saúde mental é profundamente influenciada pelos valores e ritmos de cada sociedade. Por exemplo, país do sul da europa (dos quais fazemos parte) a relação com o trabalho é ligada mais ao sacrifício, o trabalho como algo que nos dignifica e que nos torna “melhores pessoas”, nos país do norte já é diferente, o trabalho é importante, mas não é dele que tiram a maior satisfação, é por isso comum terem horários mais reduzidos, mais tempo para a família.
“…em culturas onde o tempo de lazer, a convivência e o descanso são vistos como parte essencial do bem-estar,…”
Indo mais a fundo, notei uma maior valorização do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Por exemplo, em culturas onde o tempo de lazer, a convivência e o descanso são vistos como parte essencial do bem-estar, há uma preocupação genuína em não deixar que o trabalho ocupe todos os espaços da vida. Em contraste, em contextos mais competitivos, onde o sucesso é medido pela produtividade e pelo desempenho constante, o stress tende a ser normalizado quase como se fosse um preço inevitável a pagar.
“…Porque, em muitas culturas, falar sobre emoções e vulnerabilidade é algo natural…”
No fundo todos queremos ser aceites, e todos nos comportamos da forma como vemos a maioria, por isso, é que na minha opinião o tratamento psicológico, terá sempre que ter atenção ao contexto cultural da pessoa que está a ser tratada. Porque, em muitas culturas, falar sobre emoções e vulnerabilidade é algo natural, o que facilita o acesso à ajuda psicológica e reduz o estigma. Já noutras, o sofrimento emocional ainda é escondido, o que pode tornar o processo de pedir ajuda mais difícil.
Essas diferenças fizeram-me compreender o quanto é importante adaptar o olhar clínico e a forma de intervir às realidades culturais de cada pessoa. E, acima de tudo, reforçaram em mim a ideia de que cuidar da saúde mental não é um luxo é uma necessidade universal, independentemente do país, da profissão ou do estilo de vida.
Parar é viver: o primeiro passo para pedir ajuda

Que conselhos práticos daria a quem sente que está à beira do esgotamento, mas ainda não sabe como pedir ajuda?
Sentir que estamos à beira do esgotamento, do burnout, é muitas vezes confuso e assustador, pensamos que é uma fase, que vai passar, mas ao refletir percebemos que já estamos assim há muito tempo. Sinais como cansaço extremo, irritabilidade, falta de motivação ou sensação que nada do que fazemos está bem feito, são sinais de alerta que precisam de atenção. No meu site um pequeno teste que pode ajudar nesta reflexão.
Parar não é fraqueza, parar é viver, mesmo que seja só uns minutos por dia, faça pausas, peça ajuda, fale com alguém do que está a sentir. Reconhecer que precisamos de ajuda é um ato de coragem e essencial para sair deste ciclo.
“O mais importante é lembrar que não precisa de enfrentar isto sozinho.“
Procurar ajuda de profissionais qualificados pode ser essencial e fazer toda a diferença, a recuperação pode ser mais rápida e eficaz se estiver a ser acompanhada pelas pessoas certas, pelos profissionais que com a sua experiência e conhecimento académico sabem o que precisa para se sentir melhor. Os profissionais vão perceber quais as áreas de vida mais afetadas e ajudar a encontrar estratégias realistas para descansar melhor, para dormir melhor, para saber reconhecer os sinais de cansaço.
O mais importante é lembrar que não precisa de enfrentar isto sozinho. Reconhecer o que sente e agir é o primeiro passo para recuperar energia, equilíbrio e confiança na sua própria vida.
Reconhecer os sinais, parar sem culpa, pedir ajuda. Sofia Carvalho deixa um apelo claro: cuidar da saúde mental é um ato de coragem — e o primeiro passo para reencontrar o equilíbrio começa com uma pausa.